A sempre atual melancolia, um ensaio
Cátia Lantyer é mestranda no Curso de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.
“A Máquina do Mundo” , poema
de Carlos Drummond de Andrade, delineia - estrofe a estrofe -, um estado de irremediável
indiferença do “eu lírico”, em relação a tudo que está ao
seu redor - a natureza, o homem, a ciência -, resultado de extrema exaustão
emocional - a melancolia. Paradoxalmente,
de cima para baixo, - da montanha, de onde tudo se vê e controla, para o chão,
submisso e pedregoso – o poeta apresenta a este “eu lírico” – que se diz desenganado -, a sedução da promessa, o equilíbrio, a certeza plena, o domínio científico e de
tudo o mais, - a máquina do mundo.
É entre a acédia e a ilusão, que Drummond, monta um abismo insuperável, para marcar o
distanciamento real entre o homem
melancólico e qualquer suposto sentido
que a vida possa ter. Pois, se de um lado desse vazio, há a promessa sedutora da
certeza, da disponibilidade total, do outro lado há algo que impossibilita
qualquer intersecção. Há um “eu lírico” oco, sem desejos, desinteressado,
totalmente indisposto e desiludido - como um soldado ferido, que, diante da
derrota iminente, deixa para trás, a frente
de batalha.
O eu deste poema de
Drummond, diz-se noturno e miserável,
e caminha “ao léu”, por uma estrada mineira qualquer, em
horário crepuscular, quando, - segundo a lógica medieval camponesa - não se distingue direito o que está no entorno,
se o “lobo ou cão”, o bem ou o mal. Solitário,
pisando pausadamente, o “eu lírico”, segue indiferente a tudo, sem cogitar
qualquer possibilidade de contato com o
que quer que seja, ensimesmado no seu vazio.
O sino anuncia a missa do entardecer, mas não lhe conecta
com o Divino – símbolo de luz,
esperança, amor, paz -, em vez disso, o som do sino é tomado pelos ruídos dos
seus sapatos, que o conectam com o que destoa completamente daquele chamado já rouco. A utopia da fé, que lhe promete
evitar que o crepúsculo se confirme dentro dele, é engolida pela mórbida mudez da terra fria– símbolo da morte,
do sofrimento, da escuridão, do
isolamento.
Solitário e sombrio, neste
final de tarde - apagado, recolhido, como o sol que se perde no horizonte – o
“eu lírico” é abordado pela ardilosa máquina do mundo, que, insidiosamente, lhe oferece um poder total,
mas ele já não consegue deixar que, sequer um ínfimo raio de sol, volte a
atravessar sua íntima escuridão, seu luto. O mundo real se transformou, para
ele, em lugar inóspito, e ele não tem energia para se deixar levar pela máquina
do mundo. Para ele, a tão desejada oferta do dom, é tardia e desprezível. Agora
o céu, - que é “o seu” -, é de chumbo – “sua” paisagem, desértica.
O abismo instransponível
entre uma suposta segurança e a incerteza, é garantido por sua convicção de ter
chegado ao fim, de que nada mais o interessa, isto é o que o move, indolente, cabisbaixo...
(...) , incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita (...).
(ANDRADE, 2005, p.284).
Entre a luz da certeza, e a treva da
melancolia, o poeta prefere direcionar o “eu lírico” para o vazio total, a apatia. Por ter experimentado
intensamente a guerra que o mundo lhe declarou,– sem, sequer, responder à oferta
-, o “eu lírico”, esgotado, dá as costas para a máquina do mundo. Convencido da falta de sentido de sua vida, certo
de sua finitude espreitada, segue
insular, por uma estrada mineira, avaliando
o que perdera, pois, se assim ainda o faz, é por que esgotou-se de esperança,
mas não de existência.
A
treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
ANDRADE, (p.284-285, 2005).
Drummond constrói um ”eu
lírico” que não tem mais nenhuma disposição de se conectar com o mundo, e suas supostas possibilidades.
É um poema de rompimento total, entre aquele
– esgotado – e o mundo, articulador.
REFERÊNCIA:
Andrade, Carlos Drummond de.
A máquina do mundo. In___Antologia
poética. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 281-285.
A Máquina do Mundo
E como eu palmilhasse
vagamente
uma estrada de Minas,
pedregosa,
e no fecho da tarde
um sino rouco
se misturasse ao som
de meus sapatos
que era pausado e
seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e
suas formas pretas
lentamente se fossem
diluindo
na escuridão maior,
vinda dos montes
e de meu próprio ser
desenganado,
a máquina do mundo se
entreabriu
para quem de a romper
já se esquivava
e só de o ter pensado
se carpia.
Abriu-se majestosa e
circunspecta,
sem emitir um som que
fosse impuro
nem um clarão maior
que o intolerável
pelas pupilas gastas
na inspeção
contínua e dolorosa
do deserto,
e pela mente exausta
de mentar
toda uma realidade
que transcende
a própria imagem sua
debuxada
no rosto do mistério,
nos abismos.
Abriu-se em calma
pura, e convidando
quantos sentidos e
intuições restavam
a quem de os ter
usado os já perdera
e nem desejaria
recobrá-los,
se em vão e para
sempre repetimos
os mesmos sem roteiro
tristes périplos,
convidando-os a
todos, em coorte,
a se aplicarem sobre
o pasto inédito
da natureza mítica
das coisas,
assim me disse,
embora voz alguma
ou sofro ou eco ou
simples percussão
atestasse que alguém,
sobre a montanha,
a outro alguém,
noturno e miserável,
em colóquio se estava
dirigindo:
“O que procurasse em
ti ou fora de
teu ser restrito e
nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se
ou se rendendo,
e a cada instante
mais se retraindo,
olha, repara,
ausculta: essa riqueza
sobrante a toda
pérola, essa ciência
sublime e formidável,
mas hermética,
essa total explicação
da vida,
esse nexo primeiro e
singular
que nem concebes
mais, pois tão esquivo
se revelou ante a
pesquisa ardente
em que te
consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para
agasalhá-lo”
as mais soberbas
pontes e edifícios,
o que nas oficinas se
elabora,
o que pensado foi e
logo atinge
distância superior ao
pensamento,
os recursos da terra
dominados,
e as paixões e os
impulsos e os tormentos
e tudo que define o
ser terrestre
ou se prolonga até
nos animais
e chega às plantas
para se embeber
no sono rancoroso dos
minérios,
dá volta ao mundo e
torna a se engolfar
na estranha ordem
geométrica de tudo,
e o absurdo original
e seus enigmas,
suas verdades altas
mais que tantos
monumentos erguidos à
verdade;
e a memória dos
deuses, e o solene
sentimento de morte,
que floresce
no caule da
existência mais gloriosa,
tudo se apresentou
nesse relance
e me chamou para seu
reino augusto,
afinal submetido à
vista humana.
Mas, como eu
relutasse em responder
a tal apelo assim
maravilhoso,
pois a fé se
abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais
mínima – esse anelo
de ver desvanecida a
treva espessa
que entre os raios do
sol inda se filtra;
como defuntas crenças
convocadas
presto e fremente não
se produzissem
a de novo tingir a
neutra face
que vou pelos
caminhos demonstrando,
e como se outro ser,
não mais aquele
habitante de mim há
tantos anos,
passasse a comandar
minha vontade
que, já de si
volúvel, se cerrava
semelhante a essas
flores reticentes
em si mesmas abertas
e fechadas;
como se um dom tardio
já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos,
incurioso, lasso,
desdenhando colher a
coisa oferta
que se abria gratuita
a meu engenho.
A treva mais estrita
já pousara
sobre a estrada de
Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo,
repelida,
se foi miudamente
recompondo,
enquanto eu,
avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de
mãos pensas.
Carlos Drummond de Andrade