Crítica literária e literatura "marginal"

De acordo com meu trabalho de pesquisa no Projeto "Posturas da crítica literária contemporânea" , a ausência da crítica literária nos suplementos dos principais jornais brasileiros, pode ser pensada tomando como ponto de partida o surgimento da  cultura digital, que viabilizou a democratização da produção literária, ao mesmo tempo em que criou para a imprensa uma necessidade de replanejamento de suas estratégias de marketing,  frente a novas possibilidades de comunicação de massa, o que resultou na redução do espaço até então reservado a publicações sobre literatura e cultura. Aliada a esses fatores, uma dinâmica acadêmica que tende a não socializar o conhecimento especializado, também é apontada por alguns críticos literários como fator que alimenta uma suposta crise da Literatura.
No que se refere à democratização do literário, a professora de Literatura Brasileira, Regina Dalcastagnè, no artigo Quatro notas sobre a literatura na internet, publicado na revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, número 11, como também o crítico Alcir Pécora, em Impasses da literatura contemporânea, publicado no jornal O Globo em 2011, relacionam a disponibilização pública de uma quantidade inestimável de textos e questionamentos informais a respeito da literatura e da cultura, com a má qualidade daquilo que é produzido.
Para Pécora, “a crise é de expressão”, e o que ocorre no espaço virtual-tecnológico é a socialização de algo que ainda não foi lapidado.
Já o autor de Então você quer ser um escritor?, Miguel Sanches Neto, aponta aspectos positivos, relacionados à disponibilidade da plataforma virtual e à visibilidade que este ambiente proporciona. O autor também sugere uma relação entre uma certa inércia da crítica especializada e o aumento da publicação de livros. É sobre esta ampliação do lugar de fala da crítica, que Sanches discorre em entrevista concedida ao Jornal de Londrina, cujo título é “O crítico está morto”: 
 
[...]Temos gente escrevendo em todos os lugares, e isso fornece um bom feedback para os autores. É positiva até por outro aspecto, o do espaço disponível. Meus livros vêm sendo editados em grandes editoras desde 2000. De lá pra cá, percebi que o espaço para a crítica em jornais e revistas especializadas, se não se manteve o mesmo, diminuiu. A quantidade de livros publicados, porém, só aumentou. A internet acabou sendo uma saída natural para dar vazão às avaliações dessas novas obras. O grande número de títulos praticamente exigiu essa pulverização. (SANCHES NETO, 2014) 
 
Outra especulação observada, é de que esta atmosfera de desconfiança e vigília de muitos dos especialistas em literatura com relação a esta configuração da produção literária contemporânea,  decorra de uma ameaça indesejada da perda de seu status quo,  o que significaria,   não a imediata morte da literatura como objeto cultural canônico, mas, antes disto, o fim do papel do mediador entre leitor e obra literária, aquele que, via jornal, o crítico ocupou por muitas décadas. Diante disto, a relação que se tem feito entre a ausência da crítica nos jornais e a crise da literatura, efetivamente se verifica sob a forma de - no mínimo, -uma espécie de desconforto daqueles que detêm o poder de atribuir valor à obra literária, já que aquilo que tem se colocado como produções literárias contemporâneas e que não tem passado pela peneira do crítico especializado, carrega um certo esforço de imposição da legitimação de outros pontos de vista relativos à valoração de obras literárias,  o que para muitos significa  uma pretensão à transformação do método analítico, pautado em critérios acadêmicos. Diante disto, especula-se que a Teoria da Literatura esteja ameaçada pela cultura popular, e o temor é de que esta destrua aquilo que se guarda há muitas décadas, a literariedade, aquele conjunto de normas específicas que serve para valorar a literatura, exatamente o que separa a literatura canônica - reconhecida pelas academias de letras do Brasil como a melhor literatura - de literaturas que vêm surgindo à margem do julgamento acadêmico. 
Algo que, na opinião de Pécora, não tem força para se concretizar. Para ele, a ideia de literatura como lugar de multidão não é compatível com a produção de arte, a questão não é de direito de participação, e sim de competência para criar de maneira sempre além da esperada. Este seria, para Pécora, o lugar da literatura, e só este, o da composição concreta. Para Pécora, é preciso técnica para produzir arte. Ainda em Impasses da literatura contemporânea, o autor afirma: 
 
[...] não há nenhum outro valor simbólico, de representação, que substitua o objeto. De outra maneira, a literatura está no campo da composição, em nenhum outro. Não há atitude, comportamento ou opção ideológica que permita saltar sobre os mecanismos da composição. [...] (PÉCORA, 2011)
 
Por último, encontramos também uma suspeita lançada pelo professor Paulo Franchetti em seu artigo A demissão da crítica - publicado na revista "Germina", em 2005, – a de que esteja implícito nesta ausência da crítica literária, um certo acordo de boa convivência entre os críticos e os autores.  Franchetti julga que este comportamento revela um gesto de repúdio à crítica e ao direito de criticar, uma repressão ao pensamento independente: 
 
[...] O resultado imediato é a anemia e o desinteresse que caracterizam a maior parte da produção brasileira que enfoca os textos literários do presente, incapaz de real enfrentamento com os objetos e problemas imediatos da cultura contemporânea, e, principalmente, com a questão do valor [...] (FRANCHETTI, 2005) 
 
Fato é que o que encontramos nos jornais são produções voltadas para a divulgação de lançamentos de livros, publicações que trazem uma leitura sempre positiva da produção literária, o que evidencia que o mercado editorial- bem como a grande imprensa -, tem estabelecido uma boa relação com a produção literária contemporânea que se constrói à margem do julgamento acadêmico.
Diante dessa provável e confortável harmonia, da qual se exclui a crítica literária especializada,  parece conveniente que tentemos analisar o lugar que esta ocupa no cenário atual, a partir da sua própria história,  do seu processo particular, já que é no passado que se verifica uma situação oposta, quando havia uma forte relação entre crítica literária e grande imprensa, lugar onde as primeiras vozes que se prestaram a valorar obras literárias iniciaram esta atividade.
Entre as décadas de 1940 e 1950, segundo discorre Flora Süssekind em Rodapés, tratados e ensaios ( Papéis Colados,1993), crítica literária,  grande imprensa e mercado editorial mantinham uma relação de grande parceria e de crescente poder sobre o destino das obras escritas àquela época. Era ainda no jornal que se lastreava a vida literária e cultural brasileira. Bacharéis, autodidatas na sua maioria, escreviam num formato que oscilava entre a crônica e a notícia, adaptados às exigências e ao ritmo industrial da imprensa.  Porém, uma outra crise transformou essa dinâmica que parecia funcional, tanto com relação à crítica literária em parceria com os jornais, quanto na relação daquela com seu público leitor. Para  Nelson de Oliveira,  essa foi uma crise que se deu entre duas hermenêuticas. É como ele se refere às críticas universitária e jornalística, duas vertentes firmes em seus propósitos de monopolizar o poder sobre o objeto literário.
Sobre esta primeira grande disputa pelo lugar de enunciação da crítica literária, Cláudia Nina discorre no livro Literatura nos jornais:
 
A partir dos fins dos anos 1940, o impressionismo crítico passou a ser combatido pelo professor Afrânio Coutinho, autor da seção “Correntes Cruzadas”, publicada no suplemento literário do “Diário de Notícias”, ininterruptamente, de 1948 a 1966. Recém chegado dos Estados Unidos, (...) Coutinho levantou a bandeira de uma metodologia de análise, impondo aos críticos a necessidade de incorporar uma investigação da literatura próxima à atividade científica contra o que chamava de “amadorismo” dos autores de rodapé. [...] (NINA, 2007, p. 25) 
 
Para João Cézar Rocha, em A cátedra e o rodapé: um debate nacional, um ensaio que faz parte do seu livro Crítica literária: em busca do tempo perdido?, a derrota da crítica amadora só se consumou  com a inclusão da disciplina Teoria da Literatura no currículo de Letras, bem como com a criação de órgãos federais de apoio à pesquisa, como CNPq e Capes, fundado em 1951, além da criação do sistema de pós-graduação, consolidado no final da década de 1960. O autor acrescenta que esse movimento foi favorecido também pelas transformações pelas quais passou a própria imprensa, negando lugar à publicação de longos textos analíticos.
Ao retomar essa disputa inicial da cátedra pelo poder sobre a literatura, percebe-se que, se a discussão sobre as obras literárias  era  objeto de permanentes polêmicas, e fazia parte do cotidiano dos leitores de jornais acompanharem as querelas que eram travadas pelos críticos – impressionistas ou não -, o que se pode verificar hoje é exatamente o contrário, pois os leitores raramente encontram nos jornais um julgamento crítico especializado que possa orientá-los na escolha de um livro. 
A autora do livro Crítica Cult, Eneida Maria de Souza, realiza uma reflexão a respeito do descompasso, que não raramente se pode identificar entre o posicionamento daqueles que têm um saber mais amplo e legitimado e o posicionamento daqueles que partem das novas configurações do saber.  De acordo com a autora: 
 
O mundo mudou, nos últimos dez anos, de forma assustadora (para o bem ou para o mal), e por que motivo as concepções artísticas, teóricas e políticas não deveriam também trocar o caminho tranquilizador do reconhecimento pelo saber sempre em processo? (SOUZA, 2002, p.78)  
 
A questão é que essa aproximação presume a formação de um elo entre a “boa” e a “intuitiva” crítica, que, segundo Eneida Souza, pode ser o que realmente amedronta o pensamento crítico do intelectual brasileiro. Para a autora, o medo da perda de autonomia do objeto literário está diretamente relacionado ao receio do crítico de perder seu objeto de estudo, sujeito a se diluir em meio à produções populares consideradas por alguns sem valor estético.
Assim, diante de tudo que aqui foi apresentado, nos parece mais coerente não relacionar esta atual crise a uma ameaça de morte do literário, mas a uma situação comum entre literatura - objeto cultural perfeitamente aberto a este tipo de tensionamento - e outras formas de expressão, entre críticos amadores e críticos literários especialistas, dinâmica que alguns acreditam  estar relacionada principalmente à manutenção de uma postura acadêmica voltada para o não envolvimento com estes outros espaços da produção literária,   aumentando a suspeita de que o que há, é uma intenção em ratificar e preservar o lugar que guarda o poder para julgar o objeto literário. Assim, a estratégia seria: quanto menos os especialistas se dispuserem a valorar a literatura contemporânea que emerge à margem da academia, quanto menos diálogo com outros lugares de enunciação, mais se protege o objeto literário de sofrer críticas baseadas em métodos genéricos, ou seja, não julgar para não ser julgado.



Relatório de pesquisa apresentado no ACTA 2015


Cátia Lantyer foi bolsista PIBIC no projeto "Posturas da Crítica Literária Contemporânea." , cursa atualmente o sétimo em Letras Vernáculas na Universidade Federal da Bahia.




DALCASTAGNÈ Regina. Quatro notas sobre a literatura na internet. Estudos de literatura brasileira contemporânea., n 11. Brasília, janeiro/fevereiro de 2001, p. 27-31.
FRANCHETTI, Paulo. A demissão da crítica. 2005. Disponível em: http://www.germinaliteratura.com.br/enc_pfranchetti_abr5.htm. Acesso em 7/01/2014. 
NETO, Miguel Sanches. O crítico está morto. 2014. Disponível em: http://www.fofoki.com/noticias/critico- morto-diz-miguel-sanches-neto. Acesso em 02/07/2014. 
NINA, Claudia. Literatura nos jornais: a crítica literária dos rodapés às resenhas. São Paulo: Summus editorial, 2007. 
OLIVEIRA, Nelson. Demissão por justa causa. 2005. Disponível em: http://cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=180. Acesso em 22/06/2014. 

ROCHA, João Cézar. A cátedra e o rodapé: um debate nacional. In: ______ Crítica literária: em busca do tempo perdido? Chapecó. Argos, 2011, p. 161-244.