Flores da vida

Amigos morrem,
as ruas morrem,
as casas morrem.
Os homens se amparam em retratos.
Ou no coração dos outros homens....
[Ferreira Gullar]

"Compare-se a tela em que se projeta o filme com a tela em que se encontra o quadro. Na primeira, a imagem se move, mas na segunda, não. Esta convida o espectador à contemplação; diante dela, ele pode abandonar-se às suas associações. Diante do filme, isso não é mais possível. Mal o espectador percebe uma imagem, ela não é mais a mesma [...] 'O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo.' Ele corresponde a modificações profundas do aparelho perceptivo, como as que experimenta o passante [...]"
Walter Benjamin, em "Magia e técnica, arte e política". Ensaios sobre literatura e história da cultura. p. 207.

Autopsicografia
[Fernando Pessoa]

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente...
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
"Meu coração tinha dado a meia volta e encarcerado a si em meio ao desejo solitário de querer amar por querer amar por querer amar. Encarcera a si, desiludido, pelo fato de o alvo visado pelo amor ter se esquivado, se furtado ao assédio, tão logo ele se sentira transformado em razão e sentido para minha primeira experiência de amor. Visado e apontado, o alvo se subtrai ao meu desejo, escondendo-se na paisagem, como animal arisco frente à espingarda do caçador."

Silviano Santiago em "Mil rosas roubadas" p.230.

Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê.
[Caio Fernando Abreu, em " O Ovo Apunhalado"]


" - Tudo é natural porque tudo é artificial. Será que há diferença entre rosas naturais e rosas feitas em papel crepom? Independentemente da água que alimenta a uma e é desnecessária à outra, a flor natural e a artificial não são, nas respectivas jarras, duas e a mesma? E não são ambas belas?"
[Mil Rosas Roubadas - Silviano Santiago - p. 79]

Teve vontade de pedir a Santiago que ficasse com ele, mas a rua girava junto com o movimento do carro, a rua era dinâmica, aquela pedra suspensa sobre o mar, eu não vou esquecer, como as casas que envelheciam e ruíam, como as pessoas que chegavam e partiam para se perderem umas das outras entre viagens inconciliáveis, linhas paralelas, o infinito não existia, coisas sem importância, o que era um casarão antigo de repente tinha se tornado uma avenida, um estacionamento, e o q...ue tinha sido uma presença morna se perdia à toa pelas ruas da cidade, pelas estradas que levavam a outras cidades distantes, a outros países, às vezes inatingíveis, pelos telefones que não voltavam a chamar, sem nenhuma explicação, porque era assim que as coisas eram, era assim que o que chamavam de vida, essa tontura que sentia agora evoluía em direção ao nada sobre uma esteira de perdas que não aceitava, de sonhos que não aconteciam, desejos espatifados, espelhos, pedra, cacos, fios dispersos no tear de um tapete incompreensível que as mãos vazias um dia talvez não se atrevessem mais a tecer.
ABREU, Caio Fernando. 'Caio 3D'. O essencial da década de 1990. Rio de Janeiro: Agir, 2006, p. 120.

"Ao decidir renunciar ao estado amoroso, o sujeito se vê com tristeza exilado de seu imaginário."
BARTHES, Roland. "Fragmentos de um discurso amoroso". Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2001. p.159.
"Como ciumento sofro quatro vezes: porque sou ciumento, porque me reprovo de sê-lo, porque temo que meu ciúme machuque o outro, porque me deixo dominar por uma banalidade: sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum."
BARTHES, Roland. "Fragmentos de um discurso amoroso".Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2001. p.79
"Estou apaixonado? - Sim, pois espero." O outro não espera nunca. Às vezes quero representar aquele que não espera; tento me ocupar em outro lugar, chegar atrasado; mas nesse jogo perco sempre: o que quer que eu faça, acabo sempre sem ter o que fazer, pontual, até mesmo adiantado. A identidade fatal do enamorado não é outra senão: "sou aquele que espera".
BARTHES, Roland. "Fragmentos de um discurso amoroso". Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2001. p.147.