No processo literário de construção da
nação brasileira, tanto o índio quanto a exuberância da natureza tropical foram
tomados como alicerces para marcar especificidades das terras dominadas e da
origem do seu povo. Era preciso criar uma identidade para lastrear a construção
subjetiva do conceito de nação cuja imagem é estável e reconhecível. Para
isso, a literatura do final do século XVIII, com sua força de legitimação
passou a trabalhar no sentido de construir narrativas nas quais índios e
brancos colonizadores formassem casais, e que seus filhos simbolizassem a origem do povo brasileiro. Encobrindo-se,
portanto e para tanto, o fato de que àquela altura do processo de colonização,
a maioria dos índios nativos já tinha sido subjugada e dizimada pelos colonizadores,
e ainda o estava sendo.
E porque do índio se mantinha um
rastro, cujas marcas apontavam para sua cultura
inferior, sua identidade não acolhida e sua incivilidade, literariamente foi-lhe adaptado um estilo adequado
capaz de forjar um pertencimento digno
de uma filho da nação brasileira. Aqueles estereótipos que, na realidade
quiseram servir para justificar sua subjugação e extermínio , na ficção
careciam de uma edição. Não convinha a
narrativas tão ávidas pela construção da
origem de um povo que acreditava possuir uma essência nivelada à europeia, um traço que denunciasse algo que
remetesse a um selvagem indomável, incompatível com a alma civilizada daquele que, se de fato fora seu algoz, nesta ficção
seria sua outra parte, aquela com a
qual se fundiria. Assim, as personagens indígenas ganharam na literatura
nacionalista indianista, postura e aparência socialmente viável , para tanto, a
literatura se encarregou também de dar-lhes o lugar da subserviência espontânea ao branco, seu par. Criando
assim, o selvagem adestrado.
No mesmo sentido, a literatura nacionalista
também excluiu da escrita da certidão de nascimento da Nação, o negro africano,
certamente para não ratificar o óbvio,
fato “impolítico e abominável” (SCHWARZ,2007)
e menos ainda passível de utopia, a escravidão, lastro econômico que denunciava
inferioridade diante de nações que àquela altura já exploravam pessoas livres,
se utilizando de métodos “civilizados” e mais rentáveis.
(...) É indescritível o que era a
indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram
acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria.
(CANDIDO, 2011).
Tomando
o conceito de pátria proposto, a narrativa fílmica Iracema, uma transamazônica pode ser lida como uma contra-narrativa da nação brasileira, à medida que entendido
também como um desdobramento de obras literárias como Iracema, de José de Alencar (1865) – e a partir do que até aqui foi exposto, pode
pretender revelar - quatro séculos depois – que não houve uma relação
horizontal entre os grupos étnico-raciais originados em terras brasileiras, que
assim possibilitasse um sentimento de pertença comum capaz de acolher uma coletividade em uma identidade
nacional que, portanto, representasse a todos. Por ser uma metaficção que ao
fazer emergir outras narrativas problematiza e desestabiliza aquelas
construídas sobre o lastro da conveniência e em nome da criação abstrata de uma
pátria, Iracema, uma transamazônica, apresenta o produto
nação brasileira que contraria aquele vendido
quando de sua fundação.
A
verticalidade esmagadora que se pode perceber no filme entre as personagens
representantes do índio – Iracema - e do Branco – Tião - como também na mais
ampla dinâmica social apresentada pela produção fílmica, causa um não
reconhecimento e uma negação daquela pátria idealizada, problematizando ideias
de igualdade e, à medida que apresenta como cenário principal uma Floresta
Amazônica em inescrupuloso e ilícito processo de devastação, contrapõe cenas
que, provavelmente são registros reais
de desmatamento e queimadas, com o discurso
de exaltação da exuberante natureza tropical das terras dominadas, rasurando
assim também a imagem de nação, legitimada pela literatura.
O
título do filme - Iracema, uma
transamazônica - já dá espaço para um sentido de exploração e/ou
promiscuidade, que tanto pode ser relacionado à personagem Iracema como à Floresta
Amazônica.
A
prática da escravidão, evitada na literatura de construção da nação brasileira,
é no filme revelada sob a forma de trabalho
escravo. Um grupo de pessoas desfavorecidas, é vendida para servir de
mão-de-obra em fazendas, tendo seus documentos confiscados pelo receptor
(1:11:10). Uma leitura possível desta cena pode ser a de que, assim como os
escravos, aquelas pessoas foram enganadas e/ou capturadas a mando de indivíduos
pertencentes à classe dominante.
Os percursos que um dos personagens
principais do filme – Tião - fazia em seu caminhão, eram dentro do circuito da
riqueza produzida inicialmente pelo desmatamento da floresta amazônica, e
depois (na cena final do filme) pela comercialização do gado, criado em áreas
cujo solo já perdera sua fertilidade. Uma possível releitura do nomadismo dos
mamelucos bandeirantes decorrente da perseguição às riquezas onde quer que elas
pudessem estar.
Se no indianismo, ou - em uma
perspectiva mais ampla - no nativismo, colonos mamelucos juntam-se a mulheres
indígenas que são resgatadas de suas
origens, de sua cultura, do seu povo, na suposta intenção de uma imposição de
adequação ao modelo europeu, numa situação que sob a forma do gênero romance
(ou, noutras obras não relacionadas aqui - poesia, poema), sugere uma pretensão
de disfarçar uma relação de apagamento do outro - o indígena – e, ao mesmo
tempo, de valorar positivamente os personagens brancos, ou melhor, o que estes
representam (inclusive ressaltando seus grandes feitos), em Iracema, uma transa amazônica, o
encontro da personagem Iracema com Tião,
personagem com personalidade megalomaníaca - o Tião Brasil Grande – é
claramente despretensioso neste sentido, e segue um caminho contrário, pois, os
lugares sociais ocupados por eles estão o tempo todo evidenciando uma
verticalidade, e também nos é apresentada uma relação baseada não no amor, mas
na troca recíproca, pois, esta
narrativa cinematográfica não carrega ressentimento, melancolia. Iracema, em
sua condição de desprestigio, também se coloca como alguém munida de desejos,
mesmo que estes representem para o Outro
um traço de precariedade intelectual, predisposição à subordinação ou
ingenuidade. Iracema negocia seu corpo. Em nenhuma cena há a sugestão de que
ela não receba dinheiro ou o que quer que seja em troca de sexo.
Encontramos em registros da história
do Brasil, como na Carta de Pero Vaz de
Caminha, relatos de que os portugueses colonizadores e jesuítas
interpretavam as trocas que faziam com os
índios como sinais de bestialidade, por que estes trocavam coisas de valor
por cacos de vidros, espelho ou agulha, por exemplo. Em Iracema, uma transamazônica, Tião afirma que Iracema é burra
(38:44) e - como os colonizadores - também a explora ao negociar uma transa
(44:43) que, de trinta cruzeiros proposto por ela, paga somente três,
justificando que ela estaria usufruindo da boleia do caminhão e se alimentando
enquanto viajavam. Mas, como para os índios da época da colonização, para
Iracema era uma troca, ela era uma prostituta, a vida dela era aquela e ela não
se dispunha a ser mais que isso, o que fica evidente quando ela rejeita uma
proposta para aprender um ofício que talvez representasse a possibilidade de
galgar um outro papel social (1:18:20).
Enfim, a referida narrativa fílmica
sinaliza para um contraste - herança dos processos de colonização brasileira - que
perdura entre brancos e índios, mas
também entre pessoas pertencentes a classes hegemônicas e outras,
desfavorecidas, como também para a permanência da parceria da fé com o poder
como forças de coação política e moral, pois se as caravelas dos portugueses trouxeram
para a colônia homens armados e os jesuítas dispostos à catequização dos índios,
em Iracema, uma transamazônica, isto
é retomado. Na "Festa do Círio" é
focalizada uma cena na qual um coronel dá uma entrevista dando graças à Deus
por tudo estar correndo bem na referida festa, com a colaboração do povo. Ao mesmo tempo, outro foco mostra o povo sendo
empurrado e afastado por militares que se utilizam de cordas e empunham
cassetetes para que não haja proximidade deste em relação a militares e
religiosos. (26:09).
Uma retomada importante também é a
cena na qual a personagem Iracema
rejeita sua etnia indígena e afirma ser branca, uma ratificação da aculturação
indígena imposta pelos colonos e que também pode ser lida como um reflexo do processo de colonização e do
movimento voltado para valorização do que o Outro
era e/ou representava.
A cena final do filme mostra Iracema numa
beira de estrada, numa região carcomida pelos exploradores de madeira e de
gado, sentada na calçada de um prostíbulo, em meio a prostitutas brancas, sendo que sua aparência é
extremamente decadente e muito mais precária do que a de suas colegas, mais uma
vez contrariando a narrativa literária que para fundar a nação brasileira pretendeu
forjar uma horizontalidade entre índios e brancos.
Por outro lado, nesta mesma cena, Tião surge com um caminhão de transporte de
gado, se vangloriando do progresso que lhe contempla, e menospreza Iracema que,
àquela altura já degringolara totalmente. Esta talvez seja a cena do filme que tanto marca
a maior distância entre Tião e Iracema, entre o branco do Brasil do século XX e a índia, quanto, ao explicitar mais
uma vez a malandragem de Tião – mesmo que seu discurso, como o dos exploradores da colônia em relação
aos índios, seja para apontar Iracema como malandra – evidencia a consciência
de que Iracema, já totalmente saqueada como pessoa, como brasileira, como
mulher, agora o percebe e realmente o aponta como ladrão e explorador.
Provavelmente seja dessa forma que principalmente os índios, mas também os
tantos excluídos, vejam hoje a nação nascida em 1822.
Diante de tudo isso, por Iracema,
uma transamazônica nos apresentar uma negação à imagem estável e reconhecível próprias do conceito de nação proposto, este
filme pode ser lido como uma contra-narrativa da nação brasileira.
Cátia Lantyer é bolsista CNPQ no projeto "O escritor e seus múltiplos: migrações." , cursa o sétimo em Letras Vernáculas na Universidade Federal da Bahia.
REFERÊNCIAS
BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. Porto
Alegre: editora universidade, 1992.
CANDIDO,
Antonio. O socialismo é uma doutrina
triunfante. Disponível em http://www.brasildefato.com.br/node/6819. 2011. Acesso em 5/11/14.
SCHWARZ,
Roberto. Um mestre na periferia do
capitalismo in Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1981.
SENNA,
Orlando. BENEDICT, Anderson. Iracema, uma transamazônica. Filme https://www.youtube.com/watch?v=jPhFwT2BDtw