O que é ser contemporâneo? em "Minha mãe morrendo" de Valêncio Xavier


(...) Nietzsche situa a sua exigência de “atualidade”, a sua “contemporaneidade” em relação ao presente, numa desconexão e numa dissociação. Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo.

(...) A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; (...)

[AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinícius Honesko. Chapecó: Argos, 2010; p. 58-59.]


Em Minha mãe morrendo de Valêncio Xavier, nota-se uma inusitada combinação da liberdade criativa de sua forma - que nos apresenta uma fusão de um processo imprevisível da escrita, com uma incomum quantidade de  imagens  - com o caráter combativo de seu conteúdo, o que, no sentido sugerido pelo recorte acima citado,  marca tanto sua inatualidade com o seu tempo - por  surpreendê-lo negativamente, já que não atende às suas demandas - quanto ratifica a ideia de que essa postura diante do seu tempo, esse anacronismo, é resultado de um movimento de afastamento, de desconexão com o presente, pois que a postura crítica bem fundamentada é uma conquista que resulta de uma força de oposição, e para se colocar de frente e à distância do seu tempo, para ser nesse sentido, verdadeiramente contemporâneo, é preciso não estar embaixo dele - seja pelo conforto da sombra que essa posição oferece para alguns, ou seja pela naturalização da submissão ao desconforto, que  o presente providencia para outros.

É essa dicotomia - privilégio e exclusão -  desfocada pelas sedutoras artimanhas do  presente  para distrair os sujeitos confinados numa situação de submissão, que a narrativa contemporânea Minha mãe morrendo supostamente pretende desestabilizar. É a história de um filho que passa uma vida inteira remoendo a lembrança da imagem do corpo nu de sua mãe, que viu com “olho grande” pela fresta de uma porta esquecida aberta. O autor-narrador vai dando outro tom a essa sensação que deflagrou a sexualidade e o erotismo no personagem, à medida que vai ressignificando o desejo pelo corpo de sua mãe pelo desejo  diante de um corpo nu de  mulher, Xavier vai traçando aos poucos um paralelo entre a culpa e a sexualidade natural, e vai equilibrando os pesos na  balança. Até que essas linhas da narrativa se encontram, quando em meio a esse erotismo compulsivo - como fluxos de pensamento de alguém que quer se livrar de algo socialmente repugnante, mas é sempre vencido – entre punhetas, culpa, casamento, violação aos direitos da mulher e a descoberta dos livros, surge “Maria e o filho de Maria”, quando isso se mistura, essas linhas finalmente se fundem. Assim culpa, sexualidade, erotismo e repressão passam a se relacionar – ou pelo menos é o que supostamente se pretende – ao cristianismo, pois que a relação do personagem Valêncio  com sua mãe Maria se encontra com a relação de Maria com seu filho, Jesus. Ao confrontar desejo com tradição - a figura da mãe, com a pureza sagrada e “indiscutível” da mãe de Jesus - Minha mãe morrendo está apontando para uma artimanha do presente, uma armadilha, uma aporia. Está dizendo de combinações feitas e reiteradas pelo homem para que outros homens vivam uma vida de expiação e medo. Assim costura-se poder e submissão, pondo-se os pesos dos lados certos da balança, descortinando uma falsa moralidade, ao mesmo tempo em que sinaliza que é a precariedade intelectual de um lado da sociedade que sustenta o poder de alienação do outro lado.

A narrativa chega às últimas páginas separando a lembrança da imagem da mãe do autor-protagonista da representação “daquela Maria” e associando a imagem da mãe a uma possibilidade viável, natural - fêmea nua e bela – a imagem de uma mulher. Apesar do escritor - O PROFETA VELADO, que herdou da mãe os livros, e da tradição o pecado - assumir ainda um desconforto, desejo e culpa já se relacionam de uma maneira mais consciente. O passado atualizando o presente, por que a este nem na forma nem no conteúdo a narrativa Minha mãe morrendo adere.

Além dessas questões já abordadas, em Minha mãe morrendo, o tema central se amplia e se diversifica e a forma de abordá-lo, naturalmente, acompanha esse ritmo. Ao escrever essa história, referências a lendas e contos infantis e a associações com lugares e culturas distantes foram feitas, fragmento de texto de outro autor e nomes de filmes foram adaptados à trama à medida que outros temas foram sendo agregados – violência de gênero, religião e poder, sexo –, sem ancorar em tempo ou lugar algum. Com esse distanciamento, com esses deslocamentos, pode-se  ir além do óbvio, pode-se apreender mais do que o seria se a dinâmica escolhida fosse a de circular em torno do presente, lugar onde tudo se basta, tudo se explica, sem nenhuma contextualização produtiva. A distância possibilita o conhecimento do que está “por trás” do que se vê , do que se sente, do que se sabe. É – associando o livro ao sentido de contemporaneidade proposto - por esse anacronismo e por essa dissociação que o produto desta escrita é  contemporâneo ao seu presente e , ao mesmo tempo e pelas mesmas razões, inatual dentro dele.

No que se refere ao lugar da narrativa Minha mãe morrendo no cenário literário quando de sua publicação e neste presente, pode-se apontar a escolha do autor pelo gênero autobiográfico como uma característica que diz de contemporaneidade no sentido de não satisfazer às pretensões do seu tempo, já que autobiografia está à margem da cultura literária canônica que não a reconhece como gênero textual literário, o que parece significar que mesmo tendo consciência do que Dalcastagnè (2007) chama de  legitimidade social que a literatura retém, Xavier priorizou sua autonomia criativa, legitimando, este sim,  seu lugar de fala, como o lugar de sua livre auto representação.

Diante do exposto, também se pode concluir – e para isso não será necessário prolongar esta investigação –  que, não há em Minha mãe morrendo, de Valêncio Xavier, nenhum indício do que a crítica Beatriz Resende  afirma haver quando discorre sobre o que ela chama de “as formações culturais contemporâneas”, no seu ensaio A literatura brasileira na era da multiplicidade:


[...] as formações culturais contemporâneas parecem não conseguir imaginar o futuro ou reavaliar o passado antes de darem conta, minimamente, da compreensão deste presente que surge impositivo, carregado ao mesmo tempo de seduções e ameaças, todas imediatas. (...) A presentificação me parece também se revelar por aspectos formais [...]



 Cátia Lantyer é bolsista CNPQ no projeto "O escritor e seus múltiplos: migrações." , cursa o sétimo em Letras Vernáculas na Universidade Federal da Bahia.


Maio de 2014


REFERÊNCIAS


AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinícius Honesko. Chapecó: Argos, 2010.

BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. v. 01. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 189.

DALCASTAGNÈ, Regina. A auto-representação de grupos marginalizados: tensões e estratégias na narrativa contemporânea. Porto Alegre: Letras de hoje, 2007. p. 20.

DANELON, Márcio. O método Nietzschiano de crítica ao cristianismo: filologia e genealogia. disponível em: www.unimep.br/phpg/editora/revistaspdf/imp28art04.pdf

RESENDE, Beatriz. Contemporâneos. Expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008. p. 28.